Morte no avião
Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia:
um dia cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer.
Não morrerei agora.
Um dia inteiro se desata à minha frente.
Um dia como é longo.
Quantos passos na rua, que atravesso.
E quantas coisas no tempo, acumuladas.
Sem reparar, sigo meu caminho.
Muitas faces comprimem-se no caderno de notas.
Visito o banco.
Para que esse dinheiro azul se algumas horas mais, vem a polícia retirá-lodo que foi meu peito e está aberto?
Mas não me vejo cortado e ensangüentado.
Estou limpo, claro, nítido, estival.
Não obstante caminho para a morte.
Passo nos escritórios. Nos espelhos, nas mãos que apertam, nos olhos míopes, nas bocas que sorriem ou simplesmente falam eu desfilo.
Não me despeço, de nada sei, não temo: a morte dissimula seu bafo e sua tática.
(...)
A morte dispôs poltronas para o conforto da espera.
Aqui se encontram os que vão morrer e não sabem.
Jornais, café, chicletes, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza,
nossos corpos amarrados.
Vamos morrer,
já não é apenas meu fim particular e limitado,
somos vinte a ser destruídos,
morreremos vinte, vinte nos espatifaremos, é agora.
Ou quase. Primeiro a morte particular,
restrita, silenciosa, do indivíduo.
Morro secretamente e sem dor,
para viver apenas como pedaço de vinte,
e me incorporo todos os pedaços
dos que igualmente vão parecendo calados.
Somos um em vinte, ramalhete
dos sopros robustos prestes a desfazer-se.
(...)
Ó brancura, serenidade sob a violência
da morte sem aviso prévio,
cautelosa, não obstante irreprimível aproximação de um perigo atmosférico
golpe vibrado no ar, lâmina de vento no pescoço,
raio choque estrondofulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia.
(Carlos Drummond Andrade)
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